quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

A Mocinha

Eram duas irmãs por explicações sociais. A primeira era bela, de corpo invejável e simpatia estonteante. Encantava-se por jardins de tulipas brancas, encantava-se pelo ardor do sol. Encantava a vida passageira. Era musa romântica, era idealizada à noite. Era perfeita, amada, guardada. Chamemos-na de Musa, com sua imagem à perfeição, longe do pecados e do materialismo. Era encantadora. Era ultraromântica

Eis que surge a segunda, e que pena que seja a segunda, pois era real e nada tinha para idealizar. Apesar de menor idade, já apresentava nos seios marcas avançadas, mostras da idade, de um tempo que já começava a castigar. Tinha muitos amores imaginados. Entregava-se aos homens sem pudor ou resquício. Entregava-se, e o fazia de uma vez só. Também era bonita, mas de uma maneira mais exótica. Chamemos-na de Libido, com seus defeitos e vontades, tão diferentes dos buscados por seus amores de mentira.

Cruzam-se os caminhos das jovens meninas, uma mais velha e uma mais prática. Uma bonita e uma de verdade. Liam textos diferentes, sofriam dores diferentes. A primeira, nossa Musa, era burguesa, e cantava à lareira versos para seu rapaz. A segunda, Libido, dançava a noite em ruas transversais, à procura de alguém, à procura de ninguém.

Em uma noite, à mais de meia-noite, em uma taverna cruzam-se as duas, reflexo da outra. A Musa, leve, veste um vestido branco, de gola alta e bainha dançante, no qual se vê, com alguma dificuldade, a leveza e sensualidade de algo entre o tornozelo e as pernas. Seu sapato é ligeiramente alto, seu cabelo é ligeiramente preso. Ela é ligeiramente, toda pequena, Musa idealizada.

Já Libido, voluptuosa, veste um vestido também, mas por aí acabam-se as coincidências das vestimentas. Sua roupa é de cor forte azulada, com um leve decote sobre o peito, no qual se vê a carne acima dos seios fartos. Desce justo pelo corpo, destacando a cintura fina e as cadeiras generosas, com um par de pernas grossas, acabando junto aos joelhos.

Entram juntas na taverna, sentam-se lado a lado, e sem seus copos bebem o frescor da noite da juventude. Uma busca amores, a outra busca verdades. E na vida da outra enxergam-se completas, pela vida de metades.

Pergunta Musa à Libido:

- Então entrega-te aos homens sem esperar por eles sua encomenda?

- Não encomendo nada, pois não espero que me esperem. Não busco nada além do alcanço, e se a meu alcanço está a noite, então é ela que vou ter. - responde Libido, que ainda se põe a perguntar: - Mas tu que encantas homens e os faz pensar, não busca também algum trabalho a dar? Consegues viver somente à base de amar?

- Vivo de amor, pois espero o mundo. E por enquanto não me cansas esperar. No fundo, espero sem saber a quê, pois tenho medo de revelar. Pois como vemos, quem sabe das coisas por aqui é tu, e é a ti que direciono o instante. - responde Musa.

- Busco o amor também, mas nunca consigo alcançá-lo. Talvez por idealizado em ti, não o vêem para mim, e assim sigo com tudo que me resta. Queria também ser amada, além de desejada, mas já não sei mais como faço isto. - diz Libido.

- Eu sou desejada, além de amada, pois para mim faço direcionar o desejo e o amor. Não faço nada sem medida, e sempre medida sou. Serei julgada, e o saberei. Não tenho medo, tenho amor.

- Pois de tanto perder o amor, já me cansei deste tal. Pois não quero mais viver sempre a buscar, e já não sei mais aonde achá-lo, neste vasto campo que me ponho a procurar. Depois de insistidas e jogos corriqueiros, perdi meus pontos neste jogo traiçoeiro. E agora, meu amor se perdeu de mim, e aqui estou à procura de alguém, para apenas outra noite passar.

- Então já amastes e fostes amada? Então não és tão seca quanto aparenta ser. Como podes, após tanta carga, ainda ser mais nova que eu? - pergunta Musa.

- Sim, eu fui amada. Na verdade, não passo de um avanço teu. E todas estas tuas histórias, já as vi uma ou duas vezes. Também sei o gosto do amor, mas sei além deste outros que ainda não sabes. Sei além deste o gosto da perda, da derrota, da traição. Sei o gosto do desejo amado, do amor perdido, da dúvida e da indecisão. Sou tua versão melhorada, tua versão piorada. Avançada, sou tua versão madura. Serás como eu, e também acharás a velha desilusão. Serás como eu, criança, ainda que em idade mais avançada. Tua tinta ainda há de ser um borrão.

Sem pestanejar, levantou-se Libido e deixou o lugar, com seu andar maduro e sólido, de quem já não quer mais nada.

E a minha cabeça rodou por um momento, por um caminho desconhecido até então.

terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

Hipocrisia

Não me venha com hipocrisias sobre quão falsa eu pareço para ti. E não fale mais do meu erro, como se foste perfeito, quando nós sabemos o que acontecera. Errei, e não admito o contrário. Ainda queima meu corpo a ideia antiperfeita consumada. Não me deixarei arrepender, não me deixarei cair pelas escadas. Seria tudo hipocrisia, manual de boas maneiras. Porque eu não sei as regras, ou não sei jogar. Porque eu sigo a minha cartilha, onde não há cartilha, ou alguém para reclamar. Sabemos igualmente o que acontece, mas que guardemos nosso tempo, cada um a sua maneira. Cada uma ao seu instante, importante em seu minuto. Passado distante.

Barroco

Somos uma antítese, uma contradição. Um caminho oposto pelo vértice, uma história sem fim. Somos o começo até aonde vão os nossos limites. Somos barrocos, somos o sim e o não. Barrocos, somos o poder e o não poder. Barrocos, somos eu e você. Somos uma batalha sem fim, barrocos. No fim da linha, eu te espero no fim da festa. Eu te espero sempre no fim. Eu só te espero, assim como você me espera sair daqui. Fazemo-nos noite, pecado, virtude. Fazemo-nos uma antítese, uma contradição. Somos antigos, barrocos. Nunca agimos errados. Somos barrocos, exatamente assim.

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

Vila

"Vem a Lua de Luanda para iluminar a rua. [...] Vem, menininha, pra dançar o caxambu."

Hoje, me deixa, porque eu não volto para casa antes do sol. Deixa eu ser feliz, deixa a lua me iluminar. Porque só hoje eu sou feliz. Porque eu sou o retrato do meu povo sofrido, porque nós somos gente forte. Vem comigo, porque hoje é dia de festa, meu amor. E hoje a minha gente ganha as ruas. E hoje a gente ganha o mundo. E hoje, o rei da festa é nosso, e ninguém pode contra nós. Ninguém vai parar a nossa festa, ninguém vai ganhar as nossas ruas. Hoje a gente dança, meu amor, como nunca o fizemos. Hoje a gente brilha, na nossa enorme passarela. Porque só por hoje a gente tem a avenida, nosso palco. Porque só hoje nós somos os donos da festa.

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

Curtinhas

1) Ainda que sempre tivessem se visto, era notória a atração. Não tinham antecedentes criminais, não tinham histórico com drogas. Eram de boas famílias, que prezam a união e a fidelidade. Não tinham nenhum interesse na geografia dos Andes ou na economia do Zimbábue. Na verdade, não tinham o menor interesse em economia. Não precisavam, ainda, pensar em dinheiro, trabalho ou qualquer coisa que tirasse o sono. Poderiam chegar a pensar em uma briga com amigos, em um compromisso esquecido. Essas eram de se tirar o sono. Mas a economia do Zimbábue, certo que não.

2) Não tinham porque não se olhar naquele salão tão amplo. Tinham o mesmo parentesco, certo que se cruzariam. Não tinham nada a perder exceto alguns olhares de reprovação. O diabinho sempre falava mais alto. Era noite fria, apesar do dia quente. Era a dança, mas não importa, ainda. Não tinha mais nada acontecendo. Nada acontece sem permissão. E para sempre se fez durar.

3) Era uma tarde de março. O tempo estava quente, insuportavelmente. O rio corria seu curso pelas paredes de concreto, passava pela pracinha, cortava a rua ao meio. Dançava perto das meninas, que não tinham realmente nada melhor para fazer. Iluminava a vida na pequena cidade, fadada ao feudalismo contemporâneo. Desce a serra no horário de sempre, e deixa-se uma vida para trás.

domingo, 15 de fevereiro de 2009

Porque Para Mim Pesa Mais

Era uma vez um conto ultraromântico, com bruxas, princesas e cavaleiros. Era uma vez a história contada errada. Era uma vez o papel caído, a folha amassada. Ninguém percebe, mas ela chora também.

É vontade de fugir. Fugir para algum lugar perdido, fugir de alguém para longe. Fugir de mim para sempre. Você já se viu tão mal, sem saída? A história está pelo avesso e vira-se o vilão. Ou a história não está pelo avesso e se é o vilão. O ponto de vista não é outro, é o certo. Então a tua imagem é falha, mas já não há escolha. Agora, só restam as consequências, que não tardam a chegar. Agora se esgota o brilho no olhar. A força de outrora vai embora, se perde pelas nuvens baixas. Não se acha nada, porque não há nada mais para achar. Foram-se todos, a cidade está vazia. Deixaram-te todos, não há mais o teu lugar. Era vontade de fugir, fugiram todos, ainda que ainda ali. Sabiam o lado certo, e não se deixaram levar.

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

Obsoleto

Éramos três. A vadia, o fudido e o casal. Não nos conhecíamos, não tínhamos amigos importantes. Nunca conhecemos alguém famoso, nunca aparecemos na televisão. Não fizemos faculdade, não viajamos para o exterior. Somos manipulados pela mídia, não sabemos falar inglês. Por um acidente do destino, fomos postos a um lugar quase comum, em um horário comum de três. Éramos fudidos pela vida, pelo amor, pelo dinheiro. Por motivos pessoais, por motivos internos, emocionais, financeiros e todos aqueles outros que dizem no horóscopo de domingo. Dali, olhávamos os três, nós três. Apesar de tudo, ou por tudo, nossas vidas eram fascinantes. Estávamos apaixonados pela vida dos outros dois. Era interessante, era igual. Exatamente igual, porque no final, caía no mesmo buraco. Éramos três fudidos, igualmente fudidos. Sem diferenças, éramos perfeitamente iguais.

Éramos infelizes, e juntos descobrimos a nossa melancolia líquida. Inundávamos lugares, preenchíamos vazios. Para nós, era necessário a chuva no fim da tarde, o amor amaldiçoado, as juras de mentira. Para nós, é preciso errar e se enganar, confiar em quem não deve. E ganhar, perder, jogar. É necessário vivermos, amarmos, sofrermos. Para o texto sair bonito, para no fim do dia ter algum sentido. É preciso, para nós, um objetivo, um motivo, para ser forte e dizer "Nenhuma lágrima foi derramada".

Éramos os três iguais, amáveis, bonitos. Éramos três fudidos, sem grau ou comparação. Éramos três, nós três, o sentido da contradição.

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

O Momento

O olhar caído, no certo da incerteza do momento. As palavras tocadas, usadas na beleza da expressão.

Era noite. Apesar dos conselhos, avisos e advertências, era visível: elas saíam para a caça. Se arrumavam para tal, com sapatos caros, cintura perfeita, os seios parcialmente a mostra, em um decote singelo e delicado. Eram a prova de que o pecado não só existe mas pode ser consumado. Não havia quem não caísse aos olhos, não fosse seduzido, não se deixasse levar. Não procuravam um amor antigo, paixão ardente, amigo secreto. Acharam amor secreto, paixão antiga e no outro a verdade. Na garganta, a voz sem saída. Era noite, e o sonho real as alimentava. Tentadora, mente que planeja, proibida desde então. Mente tola, que erra o caminho e acerta a direção.